o caminho é por aqui
a 300mg da realidade
Bebo ao lar em pedaços, à minha vida feroz, à solidão dos abraços. E a ti, num brinde, ergo a voz… ao lábio que me traiu, aos mortos que nada vêem, ao mundo, estúpido e vil, a Deus, por não salvar ninguém. (Anna Akhmatova)
® Direitos de autor reservados. Conteúdo registado no Instituto-Geral das Actividades Culturais.
terça-feira, 17 de maio de 2011
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Noite Obscura
Acordo entorpecido. Poder-se-ia dizer – anestesiado,e nesse caso não estaria a abrir as pestanas. Ainda. A mão, por entre uma dor de cabeça infernal, procura o interruptor da luz que deve estar pendurado algures na mesa de cabeceira. Bate. A minha mão bate num objecto que, de início, não consigo identificar. Deve ser do tacto adormecido. Mas o som remete-me para qualquer coisa em vidro. Atinjo o interruptor e acendo a luz. É uma garrafa. O despertador pisca uma hora qualquer que não pode ser real. Deve ter faltado a luz enquanto eu dormia pesadamente. É uma garrafa – VAT 69. Decidi recordar origens. Decidi reviver tradições, metafísicas populares, crenças e lendas - enfim, um estímulo estúpido do patriotismo desmedido de fígado doente mais do que inchado. Abro a garrafa e dou um gole profundo com sabor a morte de gargalo. Arde-me a garganta. Arde-me o estômago. Na mesa de cabeceira, um maço de tabaco exibe um cigarro feliz. Puxo-o para mim. Vou ao bolso das calças e tiro o isqueiro. Dormi vestido. Mais uma vez. Estou habituado. Não me levanto. Não vale a pena dar-me a esse trabalho estóico, até porque, talvez, não tivesse forças para isso. Não me sinto e por isso não sei. Olho à minha volta, e vejo uma pilha de roupa enorme que surge do chão qual Evereste de tecidos coloridos e sujos. Aposto que veria o mar se lhe fosse capaz de subir. Dou outro gole, porque a vida é feita destas pequenas perdas que ardem. Como o Amor por exemplo. Arde quando o perdemos e mói quando o temos. Contradições-género-ciência-oculta. O amor é só mais gole de uma garrafa a resvalar de um ego qualquer. Mais um gole, que a vida é feita deste fluído agridoce que nos coloca em frente a cada uma das nossas frustrações. Ah! - que bom que é ser-se diferente. O importante é ser diferente; no sofrimento, na alegria, e até, na sujidade de espírito. Ser diferente, ou lá o que isso queira dizer. Dou outro gole, porque a vida não é feita de nada disto, e eu, eu abomino a vida. Ou pelo menos, abomino uma parte de vida que há em mim. Mas espera lá tu. Há um corpo inerte ao meu lado. Veste uma farta cabeleira loura. Está hirto. Descansa pesadamente – também? - se eu descansasse. Algures por entre os meandros labirínticos de uma noite, que simplesmente me escapa à memória, devo ter amado este corpo. Ama-se sempre nas noites confusas de copos que transbordam, euforias desmedidas e imprecisas que nos afastam justamente do Amor. Do amor próprio. Devo ter amado – este corpo que jaz. Se eu ao menos pudesse e conseguisse recordar. Mas não. Dou outro gole. Mato a garrafa porque o que de mim havia a matar, há muito que matei. Sou assim. Rápido e certeiro. De forma cruel e masoquista, fui-me golpeando até não haver pele para escalpelar. Só faz sentido estar vivo assim. A vida é feita em profundidade e a dor também conta. A dor também marca pontos. Tento recordar-me de como esta farta cabeleira loura chegou aqui. A este quarto vazio que, mergulhado na sombra, não remete para qualquer hipótese de futuro. Mas o que é o futuro seu tolo? O futuro, aqui e agora, deve ser parecido como qualquer coisa que é, nada mais nada menos, saber o propósito e a origem de uma coisa. Por isso bebo. Para conhecer a parte mais recôndita e oculta de mim. A minha origem. Por uns momentos foco-me no instante exacto em que deixei de processar. O instante exacto – uma vez mais –, em que deixei de fixar a memória. O instante em que essa memória passou a ser esparsa. Tento levantar-me, e ao falhar nesta missão-destino, deparo-me com as costas da cabeleira farta e loura da minha amante de noite perdida. Está fria. E de súbito recordo-me. Do instante exacto. Falei com as putas ali da Alameda. Recordo-me. Trazia uma garrafa de um vinho barato qualquer na mão. Ofereci-o às damas de passeios vazios. Quis oferecer-me. Propus fundar um sindicato que falasse por elas, que falasse para as pessoas que de dia lhes fogem e as negam, e que durante a surdez da noite as perseguem desalmadamente. Depois, quem sabe, seria empresário. Empresário de putas que lhes sai em defesa dos seus direitos. Toda esta boa vontade foi arrasada com um - “oh lindo, faço-te um broche por 30 euros” - ao que este fiel e pretenso futuro empresário, membro efectivo do estado de pornografia proibida de rua sem necessidade de quota mensal respondeu - “se tivesse 30 euros, comprava outra garrafa de vinho e de certeza melhor que esta”. Sim. Estou a recordar. De regresso a casa, parti uma montra ali de uma rua qualquer, cujo nome está para além da minha capacidade de identificar os tais instantes exactos. Sim e, em seguida, dirigi-me para casa e fiz amor, sexo, paixão e desgraça com esta manequim que no frio da noite, e com o frenesim de alarmes que esburgavam o meu corpo, roubei avidamente e sem apelo. Quis dar-lhe liberdade. Acabo a garrafa de VAT 69, desligo a luz e, sem mais demoras, adormeço e alcanço a minha.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Dor
Desta vez penso que morri. Ali a um canto sem nome e sem fim. Era tudo amarelo, suave e doce. Uma morte tísica. Uma morte doente – todas as mortes são doentes. Incluindo eu, a morte maior – a morte mais doente. A morte que não devia ter nascido, nesta pele, neste corpo, nestes dentes putrefactos e amaldiçoados. É já ali, ao virar da esquina que se encontra uma certa felicidade. Paga-se a felicidade e, hoje em dia, paga-se tudo a peso de ouro. Remato. Não há discussão possível. Mitiguei o dia para que chegasse esta hora, para que chegasse a almejada tentação. A tentação de cair para o lado, a tentação de desmaiar sem morrer. Não desmaiando. Desmaiamos por tão pouco. Eu quero ir nisso, nisso de ficar sozinho, de não pensar, de não pensar na vida, de não pensar nesse sangue que corre como cavalo selvagem na veia envergonhada. Nisso tudo que tem a ver com a morte que adiamos sem saber que não vivemos. Adiamos tudo. Até a morte. Não deveria ser assim. Nada deveríamos de adiar. Teme-se tudo neste dia de sol nascer e de sol a se pôr. Tudo.
Subscrever:
Mensagens (Atom)